terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O Ser Intelectual na Modernidade


No nosso dia a dia, fazemos um uso muito frequente de termos que fazem parte da ampla classe dos “nomes”, quer seja para identificar seres e objetos, com o ato de “dar nomes” (na verdade, em geral, apenas associar-lhes um nome já existente), rotulando os seres e objetos palpáveis e impalpáveis que conhecemos ou idealizamos, ocasião em que lançamos mão da classe gramatical de palavras denominada substantivos ou, ainda que seja para caracterizar, especificar e especializar os mesmos seres e objetos, ocasião em que empregamos palavras da classe dos adjetivos.

Assim, substantivos e adjetivos têm em comum o fato de fazerem parte da ampla classe denominada, simplesmente, “nomes”. Existe uma diferença entre eles, mas essa diferença só se evidencia funcionalmente, quando aparecem combinados no sintagma nominal, numa ordem linear, o substantivo funcionando como núcleo, e o adjetivo como modificador. Quando isolados, nem sempre é possível uma distinção tão nítida entre substantivos e adjetivos, porque eles têm características mórficas semelhantes, isto é, flexionam-se para expressar as categorias de gênero e número.

O termo “Intelectual”, por exemplo, segundo professor e lexicógrafo brasileiro Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, é um termo derivado do latim tardio (intellectuale), ou seja, o latim empregado em literatura dos séc. III a V da era cristã, e que seguiu perdendo a força entre os séculos VI e VII. Já, segundo a Wikipédia em língua portuguesa, “intelectual” é um empréstimo linguístico originário da França, onde foi usado pela primeira em no final do século XIX.

Buarque de Holanda cita escritos do português José Duarte Ramalho Ortigão (Porto, 24 de outubro de 1836 — Lisboa, 27 de setembro de 1915), que aparecem na obra de compilação póstuma de textos de crítica literária, publicada em 1943 (volume 1) e 1945 (volume 2), no entanto, não me foi possível até o momento precisar a data do escrito em que aparece, especificamente, a frase:

“A infanta D. Maria era uma mulher espirituosa, de grande cultura intelectual”

Já a Wikipédia de língua francesa confirma que o termo "intelectual" é de início recente e está diretamente ligada ao caso Dreyfus, um polêmico caso de erro judiciário militar que agitou a França entre 1894 e 1906: a palavra foi adotada por Maurice Barres e Ferdinand Brunetière, que em seus escritos anti-Dreyfus, nos quais pretendiam denunciar o comprometimento de escritores como Émile Zola, Octave Mirbeau e Anatole France em favor de Dreyfus, e em assuntos militares e de espionagem, o que era estranho para eles.

Deste modo, o tom do emprego inicial do termo “intelectual” teria sido pejorativo, uma vez que tendia a levar os leitores a considerarem o intelectual visto como um refugiado em pensamentos abstratos, que perderia facilmente de vista a realidade e que lidaria com assuntos que não lhe seriam familiares. Mas o próprio desfecho do caso Dreyfus serviu de virtual desagravo contra tal significado de emprego do termo.

Na internet, existe referência a pelo menos mais uma obra literária, mas que assinala o emprego do termo “intelectual”, como anterior aos eventos na frança, mais especificamente, para o ano de 1857, na Itália, na obra literária intitulada “Della Conoscenza Intellettuale”, volume 1, publicada em 1857, sob a autoria de Matteo Liberatore.

Além do mais, a Wikipédia em língua italiana corrobora com Buarque de Holanda, ao afirmar que o termo deriva do latim tardio “intellectualis” (intelectual), um adjetivo que quer indicar o que em filosofia tem relação com o intelecto e a sua atividade de elaborar teorias e racionalizar métodos e, portanto, é caracterizada como sendo separada da sensibilidade e da experiência, consideradas de baixo nível cognitivo.

Na concepção aristotélica, intelectuais foram definidos como aqueles cuja virtude era a ciência, a sabedoria, a inteligência e a arte, que permitiam a alma intelectiva alcançar a verdade. No campo da metafísica, o termo foi, então, empregado para indicar o abstrato, em oposição à concretude e materialidade.

Assim, ao que tudo indica, parece a imprensa francesa apenas popularizou o termo “intelectual”. Seja como for, o termo “intelectual” trata-se, com certeza, de um empréstimo linguístico mas, em nada um neologismo e, cuja origem conceitual, remonta a época do Liceu de Atenas, para mais de três séculos antes de Cristo.

Um dos principais espaços de atuação do intelectual é a Universidade e, neste espaço o intelectual acadêmico desenvolve e realiza a sua atuação. Todavia, um intelectual não precisa, necessariamente surgir ligado a uma Universidade mas, sendo efetivamente um intelectual produtivo, acabará, de algum modo, por fim, sendo ligado a alguma delas. Este é o caso de muitos empreendedores que, apesar de serem tidos sobretudo como empresários de sucesso, são também notórios intelectuais. No final do ano de 1972, Steve Jobs, o principal fundador da empresa desenvolvedora e produtora de computadores Apple, ingressou na universidade Reed College em Portland, Oregon, onde cursou formalmente apenas por seis meses e anos mais tarde testemunhou: "Desistir foi a melhor coisa que fiz. Pude me dedicar às coisas que eu realmente queria fazer."

Jobs passou 18 meses frequentando o campus da Reed College, onde ganhou permissão para acompanhar as aulas como observador. Entre os cursos assistidos por Jobs estava um curso de caligrafia que anos mais tarde influenciaria na tipografia do Macintosh. Sobre o curso de Caligrafia, Steve Jobs falou: "Aprendi sobre letras com serifas e sem serifas, sobre como variar a quantidade de espaço entre diferentes combinações de letras, sobre o que torna uma tipografia excelente. Aquilo foi lindo, histórico, artisticamente sutil, de uma maneira que a ciência não havia podido captar ainda, e achei fantástico.”

Steve Jobs teve participação direta na elaboração de poucos livros, sozinho mesmo ele não escreveu nenhum, mas orientou ou inspirou a criação de várias duzias de obras. Jobs, morreu aos 56 anos de idade vítima de cancro no pâncreas. "Saber que morrerei em breve foi a mais importante ferramenta que encontrei para me ajudar a tomar as grandes decisões da minha vida. Porque quase tudo – expectativa, orgulho, medo do embaraço ou do insucesso – é insignificante perante a morte, ficando apenas aquilo que é realmente importante. Lembrar a inevitabilidade da morte é a melhor forma de evitar a armadilha de pensar que se tem realmente alguma coisa a perder", afirmou Jobs, enquanto agradecia um doutoramento honoris causa recebido pela Universidade de Stanford em 2005. O mundo perdia um gênio visionário.

Se a principal meta de um intelectual e produzir mudanças de pensamentos, posturas e comportamentos nas pessoas e nas sociedades, então, tanto Steve Jobs, quanto Jesus Cristo, foram notórios intelectuais. Se uma externalidade do intelectual moderno é denotada por produzir, inovar e gerir o capital e a propriedade intelectual, ou então dar inúmeras palestras universitárias (mesmo sem ter um curso superior formalmente concluído) então Jobs foi, realmente, um sumo intelectual, com vantagens diferenciadas sobre o intelectual acadêmico formatado, que consistiram nos seus mais elevados sensos de empirismo, praticidade e empreendedorismo, não como únicos, mas como principais meios de produzir inovação nas ciências e nas tecnologias.

Na prática, a definição do intelectual é realizada, principalmente, por outros intelectuais e estes definem o termo segundo seus próprios posicionamentos intelectuais, fato este que complexifica a definição. Num conceito mais popular, o intelectual é definido a partir da perspectiva do uso da palavra, pelo meio social no qual vive ou no qual estabelece sua trajetória social.

Ao que tudo indica, em seus primórdios, o termo “intelectual” foi idealizado para ser empregado como um adjetivo, ou seja, uma palavra que modifica um substantivo e que dá precisão ao seu sentido. Esse processo constitui um mecanismo produtivo na língua, dada a capacidade dos adjetivos de expandir e diversificar a ideia básica definida pelos substantivos.

Uma especialidade do adjetivo “intelectual” é que o substantivo que o acompanha precisa ser, necessariamente, um ser ou uma entidade capaz de raciocínio, apto a operação mental, discursiva e lógica, de modo que, “intelectual” surgiu como um adjetivo para ser associado, exclusivamente, a seres humanos, atribuindo-lhe o estado, a qualidade e a característica de um “ser intelectual”.

No entanto a popularização do termo desde o o final do século XIX acabou por torná-lo, na prática, também um substantivo. Uma palavra se torna substantivo simplesmente quando toma o lugar de um. A distinção feita entre um substantivo e um adjetivo não é, em geral, de significado (semântica) mas, sim, de função (sintaxe). Adjetivos que se tornam substantivos são casos que acontecem com frequência, por exemplo, dentro da gramática japonesa.

Também um adjetivo pode derivar de um substantivo, o que resulta na evidente existência de semelhanças morfológicas (de estrutura e de formação das palavras) entre eles, que é algo que justifica o fato de que ambos, adjetivos e substantivos, recebam a denominação comum de “nomes”. Existem ainda casos de palavras que são, em geral, substantivos, mas que podem ser usadas como adjetivos (substantivos adjetivados).

Para a classificação dos substantivos é adotado normalmente o critério semântico e para os adjetivos, o critério sintático. Voltado para o aspecto semântico das ocorrências de substantivos e adjetivos e na transitoriedade entre eles, tanto no português do Brasil como em outras línguas, alguns autores modernos tem buscado demonstrar que a classificação das classes de palavras, conforme as gramáticas escolares, não atende às necessidades do discurso, sobretudo, devido a mistura de critérios semânticos, morfológicos e sintáticos.

A “intelectualidade”, substantivo feminino que pode significar tanto o conjunto e a classe dos indivíduos intelectuais, como também as faculdades intelectuais em si, muitas vezes é interpretado como sendo “inteligência” mas, essa é uma interpretação bastante questionável atualmente, uma vez que o conceito de “inteligência” parece ser mais abrangente, envolvendo eixos cognitivos que vão além da intelectualidade, como a competência, que é a capacidade do indivíduo em agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiando-se em conhecimentos, mas sem se limitar a eles.

A inteligência dota o indivíduo da capacidade de resolver situações problemáticas novas mediante reestruturação dos dados perceptivos e para isso, a inteligência envolve, ainda, o desenvolvimento de habilidades, que decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do saber fazer. Através do exercício das ações e operações, as habilidades se aperfeiçoam e se interagem, possibilitando nova reorganização das competências.

Atualmente existe um consenso cientifico em torno de um conjunto de cinco competências humanas básicas para a atividade educacional, que são: “dominar linguagens”, “compreender fenômenos, “enfrentar situações-problema”, “construir argumentações” e “elaborar propostas”. Com o intuito de fomentar a formação e o desenvolvimento de uma comunidade investigativa cientifica (uma comunidade de intelectuais) através da educação, a próxima competência inserida como básica, somada às que já foram definidas, bem que poderia ser “investigar ciências”. Esta competência, que é também relativamente básica mas, dependente das anteriores elencaria, entre outras habilidades, as relativas a investigação ou pesquisa, a síntese e a organização. Isso feito, e já num nível mais elevado, abarcando todas as competências anteriores, poderia aparecer uma competência que se apresenta como a chave da sobrevivência e do sucesso, para o intelectual na modernidade: o “empreender avanços intelectuais”.

Muitos autores ainda costumam definir “competência” como sendo, simplesmente, um conjunto de habilidades, mas essa definição pode ser insuficiente e, portanto, mal interpretada, na medida em que se percebe que o relacionamento entre estas duas entidades é caracterizado por ser do tipo N:N, ou seja, um tipo de cardinalidade que envolve um relacionamento “muitos para muitos”. Assim, além de uma dada competência conter um conjunto de habilidades, uma dada habilidade pode estar contida em uma variedade de competências. A diferença entre elas pode se tornar tênue, enquanto o principal diferencial se torna, tão somente, quanto ao aspecto, que é mais geral nas competências e mais especifico nas habilidades.

Além disso, o conceito moderno de inteligência envolve, também, um bom êxito do bem estar emocional do indivíduo que a possui que, apesar de serem considerados aspectos não cognitivos da inteligência, dota-o da capacidade de reconhecer os próprios sentimentos e os dos outros, assim como da capacidade de lidar com eles, percebendo e exprimindo a emoção, assimilando-a ao pensamento, compreendendo e racionalizando no contexto emocional, regulando as emoções em si próprio e a sua volta, resultando em atitudes e posturas que levam o individuo a viver de uma forma mais satisfatória.

Assim, a intelectualidade se caracteriza por um avantajado desenvolvimento do conhecimento científico, quer seja envolvendo apenas uma área específica, quer seja das ciências factuais (empíricas), ou seja da ciências formais e suas ferramentas para fazer ciências, quer seja na área das ciências naturais, ou na área das ciências sociais, ou mesmo atuando concomitantemente em múltiplas dessas áreas, mas sempre associado a uma boa capacidade de comunicação e de articulação dos frutos do intelecto produzidos.

No entanto, a intelectualidade restringida a si própria pode resultar em não ser positivamente produtiva para o próprio indivíduo que a possui, caso ela não seja desenvolvida com certos cuidados pois, quando a intelectualidade suprime a inteligência, há uma propensão de o individuo passar a se autodestruir com os seus próprios saberes.

Não raro, muitos intelectuais passam a viver um estilo de vida que reflete angustia e infelicidade, frequentemente recorrendo, inclusive, a externalidade de conduta desenfreada, tais como ao abuso de álcool e outras drogas e promiscuidade sexual, simplesmente por se descuidarem da premente necessidade de aprender a lidar com a sua própria intelectualidade, o que acaba por torná-los, de certo modo, improdutivos até mesmo para os que os seguem mais de perto. Isso pode ocorrer com qualquer intelectual mas, parece existir uma tendência de ocorrer de maneira mais acentuada àquele dedicados às ciências sociais.

Em sua obra literária escrita em estilo de crônica pessoal e intitulada "A Educação do Estóico", o escritor português Fernando Pessoa (Barão de Teive) escreve:

“Não há maior tragédia do que a igual intensidade, na mesma alma ou no mesmo homem, do sentimento intelectual e do sentimento moral. Para que um homem possa ser distintivamente e absolutamente moral, tem que ser um pouco estúpido. Para que um homem possa ser absolutamente intelectual, tem que ser um pouco imoral. Não sei que jogo ou ironia das coisas condena o homem à impossibilidade desta dualidade em grande. Por meu mal, ela dá-se em mim. Assim, por ter duas virtudes, nunca pude fazer nada de mim. Não foi o excesso de uma qualidade, mas o excesso de duas, que me matou para a vida.”

Este pensamento expressa a ideia de que intelectualidade e moralidade talvez sejam incompatíveis mas, revela, sobretudo, que o Barão de Teive, que é possivelmente o último semi-heterônimo criado por Fernando Pessoa, adotado para a autoria desse único manuscrito, reuniu, como ele próprio expressa, de forma trágica, as várias obsessões do seu criador.

Fernando Pessoa, um dos maiores escritores portugueses mundialmente conhecidos, que evolucionou toda a produção poética portuguesa do século XX, era um aristocrata buscando e rebuscando traços de sangue azul na sua linhagem paterna e promulgando uma teoria de aristocracia interior; era solteiro, abastado e tinha grande dificuldade de lidar com a sexualidade.

Segundo Richard Zenith, editor e autor do post-mortem do livro que trás o tal escrito, o Barão de Teive assumiu o aspecto mais perigoso do seu criador - a razão sem freio, que o levou à conclusão de que a conduta racional da vida era impossível, e sendo assim o suicídio era a saída que a razão lhe impunha.

Traduzindo sucintamente, sem duvida Fernando Pessoa (Barão de Teive) foi um intelectual, mas subjugado pela sua própria conduta racional e, impossibilitado de dominar os seus sentimentos e emoções, confessava-se não ser um homem inteligente e, menos ainda, realizado e feliz, o que conduz a conclusão que, de fato, intelectualidade não significa, necessariamente, inteligência.

Alguns autores atuais já passam, inclusive, a incluir no rol da inteligência, aspectos como consciência interior e espiritualidade. Nem só razão, nem só emoção. Para o indiano Amit Goswami, a base da criatividade é a inteligência que baseia-se, também, nas percepções sutis e na intuição, por exemplo, ideia compartilhada pelo líder religioso conhecido como Osho Bhagwan Shree Rajneesh, que vai além, afirmando que Inteligência é o crescimento da consciência interior, não tendo nada a ver com conhecimento. Para estes autores, a inteligência está associada com meditatividade, com os valores e virtudes, e com os arquétipos que definem verdade, beleza, amor, justiça, bondade, entendendo que a consciência é a base da existência.

A consideração de temas correlatos a isso vem crescendo, inclusive, entre os cristãos. O pastor evangélico Silas Malafaia, que além de teologia é formado em psicologia pela Universidade Gama Filho, publicou a poucos anos um pequeno livro intitulado “Inteligência Espiritual”, com enfoque para o fato de que a inteligência humana tem uma dimensão espiritual e que a fé cristã é uma manifestação inteligente.

Apenas visando despertar uma reflexão descompromissada no leitor, eu coloco, ainda, as seguintes provocações conjecturais: As bibliografias de Fernando pessoa expõem, de um modo geral, aproximadamente, o seguinte (seguimentos baseado em Wikipedia): “Pessoa e o ocultismo: Fernando Pessoa interessava-se pelo ocultismo e pelo misticismo, com destaque para … (denominações religiosas) … embora não se lhe conheça qualquer filiação concreta ...”; “O seu poema hermético (estudo e prática da filosofia oculta e da magia) mais conhecido e apreciado entre os estudantes de esoterismo intitula-se ...”; “Tinha o hábito de fazer consultas astrológicas para si mesmo ...”; “Apreciava também o trabalho do famoso ocultista … Os seus conhecimentos de astrologia impressionaram … “

Quanto a Jobs, apresenta-se o seguinte: “Em seu período acadêmico, Jobs começa a ler livros sobre espiritualidade e iluminação e se torna adepto de dietas compulsivas. Jobs andava descalço pela universidade, não tomava banho e devolvia garrafas de refringente para receber alguns trocados. Aos domingos realizava caminhadas até o centro … (denominação religiosa) … para ganhar uma refeição quente. Quando precisava de dinheiro, fazia pequenos reparos eletrônicos nos equipamentos do laboratório de Psicologia. Em 1974 consegue um emprego na Atari. A empresa serviria de trampolim para que Jobs alcançasse a Europa e depois a Índia, onde faria uma jornada espiritual …”

Me parece claro que ambos intelectuais viveram cônscios de que eles tinham algum tipo de necessidade espiritual que precisa ser, de alguma forma, atendida. Evidencia-se que ambos buscaram lidar com o sofrimento fazendo dele um aprendiza espiritual! De modo que, postulados que propõem estabelecer relacionamentos entre inteligência e espiritualidade, a mim não parecem, em nada, absurdos.

Assim, os intelectuais não se caracterizam por sua elevada “inteligência” mas, sim, pela posição que assumem para si mesmos, no conjunto das relações sociais. Um indivíduo pode ser um intelectual faltando-lhe, até mesmo, algumas das competências mais básicas, além das consequentes habilidades associadas. Alguém pode ser um intelectual, sendo falho ou mesmo desprovido de inteligência emocional, ou ainda de inteligencia espiritual.

Dedicar-se a atividades intelectuais, mesmo que resulte em prazer ao indivíduo que o faz, assim como o hábito do uso de drogas o faz com os seus usuários, não requer que haja como resultado um estado de felicidade ou mesmo de autossatisfação no modo de vida do intelectual, nem mesmo garante a posse de uma postura ética, diante dos objetos-alvo dos seus estudos científicos. Por conseguinte, é apenas através do seu papel na divisão social do trabalho que podemos entender melhor quem são os intelectuais, dentro de uma visão da intelectualidade enquanto classe social.

Podemos, a partir desta visão, definir os intelectuais como uma classe social, composta pelos indivíduos dedicados exclusivamente ao trabalho intelectual. Tal classe social assume formas diferentes em sociedades diferentes. Os intelectuais sempre tiveram uma posição privilegiada no interior da divisão social do trabalho. Historicamente, os intelectuais, dentre estes notadamente os “ideólogos”, surgiram a partir da expansão da divisão social do trabalho e sempre estiveram, ou ao lado da classe dominante, ou em apoio às forças de oposição a esta.

Na sociedade escravista, os intelectuais eram, em sua maioria, os filósofos; na sociedade feudal, os teólogos e, na sociedade moderna, os cientistas. A forma de remuneração, ou os meios de sobrevivência, variam de acordo com o modo de produção, mas sempre possuem rendimentos superiores aos das classes operárias. Portanto, trata-se de uma classe social que ocupa determinado papel no processo de reprodução da sociedade e privilégios derivados disto. A sua constituição e dinâmica depende da totalidade das relações sociais e do modo de produção que está na base de uma determinada sociedade.

Isto quer dizer que existem semelhanças entre os intelectuais nos diversos modos de produção mas também diferenças. Obviamente que o papel e as características da intelectualidade, enquanto classe social poderia, devido a tais diferenças, gerar distinções nas terminologia usadas para defini-los. Sem dúvida, assim como se pode utilizar a expressão “trabalhadores” para se referir tanto aos escravos da sociedade antiga quanto aos operários da sociedade moderna ou a expressão genérica de “classe dominante” para os variados grupos que sucedem um ao outro no poder, o mesmo se pode fazer com a intelectualidade.

Isto é derivado de um necessário nível de generalidade maior da expressão, que deve, a cada forma de sociedade existente, receber um tratamento diferenciado, pois ao lado das semelhanças existem as diferenças. Todavia, num grau maior de generalidade, é fato que os intelectuais, em todas as sociedades, em sua maioria, fazem parte das classes sociais mais privilegiadas, sendo ainda, frequentemente, utilizadas como uma classe auxiliar pela classe dominante, dedicando-se exclusivamente ao trabalho intelectual que favoreça os interesses dessa, da qual se tornam servidores e dependentes.

O surgimento dos intelectuais ocorre com a separação entre trabalho intelectual e manual. Os intelectuais passam a se dedicar ao trabalho intelectual e, frequentemente, o produto do seu trabalho é de cunho ideológico. Em geral, os intelectuais não produzem a ideologia em si mas, sim, processos de sistematização dela, transformando as representações lúdicas existentes em saber sistemático, como filosofia, teologia, ou outra forma de ciência. Por exemplo, os economistas traduzem para a linguagem da ciência econômica, as representações cotidianas dos agentes do processo econômico.

Uma ideologia, uma vez produzida, passa a legitimar as relações sociais existentes, cumprindo o papel de naturalizá-las e universalizá-las, sob uma forma também considerada legítima, a forma científica, filosófica, teológica. Assim, um saber legítimo realiza a legitimação das relações sociais existentes. O discurso dos intelectuais possui uma legitimidade devido ao fato de ser considerado verdadeiro e superior. A legitimidade do discurso do intelectual se encontra na sua autodeclarada capacidade de monopolizar a veiculação da verdade, através da razão, da interpretação da palavra de Deus, da pesquisa empírica, ou de qualquer outra justificativa, ela mesma, ideológica em si, mas aceita socialmente.

Assim, os intelectuais estão frequentemente ligados à burocracia e a passagem de um intelectual para a burocracia, estatal ou privada, é bastante corriqueira, tendo em vista que o “capital cultural” pode se tornar um meio de se conquistar cargos de direção no Estado ou nas instituições da sociedade. Numa determinada sociedade em que a produção intelectual esteja predominantemente subordinada aos interesses da classe dominante, é evidente que o papel da maioria dos intelectuais será o de conservador, e não o de setor progressista da sociedade. Neste caso, a educação, a produção científica, etc., deixam de ser elementos que contribuiriam com a emancipação humana e os intelectuais, por sua posição social e pelos interesses e valores derivados dela, acabam por se tornar agentes da conservação e não da transformação.

Neste sentido, a suposta “liberdade” ou “autonomia” dos intelectuais, como defendeu o sociólogo Karl Mannheim, se torna uma ficção, e eles passam a ser tão condicionados e determinados quanto qualquer outra classe social. Os intelectuais passam a ter os seus interesses próprios, particulares, ligados aos interesses da classe dominante e, prevalecendo a manutenção de uma posição privilegiada na sociedade, altos salários, status, etc.

Se a própria existência dos intelectuais e de seus privilégios depender da conservação da sociedade, isso significa que os intelectuais estarão indissoluvelmente ligados ao poder e sem autonomia. No entanto, pode faz parte da lógica dos seus interesses produzir um discurso de sua autonomia, pois assim escamoteia sua ligação com o poder e ganha legitimidade. A ideia da autonomia dos intelectuais é uma ideologia produzida pelos intelectuais e para os intelectuais, que pode ser exemplificada pela ideologia a respeito da “neutralidade de valores” na ciência mas, também pode ser puro interesse da classe dominante. Neste sentido, os intelectuais são meramente uma classe auxiliar da burguesia, devendo, todavia ocultar esta relação.

A tese da autonomia dos intelectuais já foi defendida inúmeras vezes e sob as mais variadas formas. Realmente, os intelectuais possuem uma autonomia relativa, como todos os indivíduos, grupos e classes sociais em nossa sociedade. No entanto, não raro, os intelectuais possuem o desejo de se tornar burocratas (dirigentes), ou a própria nova classe dominante e os burocratas buscam legitimar sua dominação através do discurso sobre o saber. Aqueles que sabem devem dirigir, ou, como já dizia Bacon, “saber é poder”. Daí a suposta eterna aliança, a cumplicidade entre burocratas e intelectuais.

Poucos são os intelectuais que denunciam a si mesmos. Geralmente a crítica aos aberta aos intelectuais é proveniente de não-intelectuais. Obviamente que estamos nos referindo aos intelectuais enquanto classe social, isto é, aqueles que exercem a função de intelectuais, e não qualquer pessoa que realiza uma produção intelectual, pois nesta segunda acepção mais ampla, se não todos mas, um número muito maior de indivíduos são inseridos e considerados intelectuais, entre os quais eu me incluo.

Uma das críticas mais fortes aos intelectuais enquanto classe social foi a realizada por Jan Wanclaw Makhaïsky (1981), que realizou uma análise de cunho marxista dos intelectuais, observando os seus altos rendimentos e a fonte de tais rendimentos: a renda nacional e esta, por sua vez, é oriunda da exploração capitalista, isto é, da extração de mais valor da classe operária. O nível de vida quase burguês dos intelectuais é derivado de sua apropriação de parte do lucro patronal, de parte do mais valor global. Segundo a analise, se esta intelectualidade se diz “socialista”, seria porque ela visa concentrar os meios de produção nas mãos do Estado, para assim garantir a apropriação de uma parte maior do mais valor global.

Makhaïsky anunciou profeticamente o destino da Rússia ao criticar o bolchevismo e ser perseguido pelo Partido Bolchevique. A Revolução Bolchevique e a burocratização que lhe acompanhou gerou diversos estudos sobre a “nova classe” e sobre a burocracia e a intelectualidade. Em 1973/1974, o sociólogo Ivan Szelenyi e o romancista George Konrád escreveram Os Intelectuais e o Poder, expressando a tese de que a intelligentsia se torna uma classe que cada vez mais reduz sua distinção com a burocracia no “socialismo real” do Leste Europeu (Konrád e Szelenyi, 1981). Estes e muitos outros estudos tematizaram a intelectualidade e revelaram, com maior ou menor exatidão, as relações entre esta classe social e o poder.

Porém, é preciso deixar claro que existe uma distinção entre indivíduo e classe social. A intelectualidade, enquanto classe social, é conservadora, o que não quer dizer que todos os intelectuais, ou seja, cada um dos indivíduos pertencentes a esta classe, sejam conservadores. O indivíduo possui uma autonomia relativa e, dependendo do desenvolvimento de sua consciência, valores, interesses, ele pode, mesmo pertencendo a uma classe social conservadora, romper com a reprodução das concepções desta. Obviamente que para aqueles que realizam tal processo, é costuma ser reservada uma considerável perda de posição social, de modo de vida e todos os valores, interesses, etc., derivados de pertencer a classe da intelectualidade, e que predispõe todos os indivíduos que a compõe ao conservadorismo.

No entanto, vários indivíduos podem romper, seja devido ao seu processo histórico de suas vidas, por relações familiares, por desenvolvimento da consciência, por ligações com pessoas, pela a percepção de que apesar dos privilégios também está submetido à alienação, ao modo de vida degradado do mundo contemporâneo e ao processo de desumanização, entre outros fatores, podem contribuir com isso. Todas as classes sociais produzem seus representantes intelectuais, que podem ou não exercer a função de intelectual, isto é, indivíduos que produzem concepções (que são de seu interesse).

Esta ruptura pode ser parcial ou total. Um intelectual profissional, por pertencer aos extratos mais baixos de sua classe social, pode se revoltar contra sua condição e assim assumir um discurso crítico e até se aliar a setores que pregam a transformação social, o que não significa que tenha se tornado autenticamente um intelectual revolucionário, pois sua produção intelectual ainda fica limitada por não realizar uma superação completa, já que o seu posicionamento não é derivado de uma identificação dos seus interesses com os das demais classes mas, sim um descontentamento individual que proporciona uma revolta individual sem grande alcance e que, se for compensado, pode “mudar de lado”.

Este é o caso de diversos intelectuais ligados a partidos políticos, principalmente de “esquerda”, e é isso que possibilita a ideia do caráter corruptível de tais intelectuais, embora existam aqueles que são dissimulados, que tão logo assumam algum cargo mostram sua verdadeira face, existem também os iludidos, que são sinceros mas que não conseguem ultrapassar determinadas concepções – não se aliando com a direção e nem rompendo com o partido – e geralmente ficam à margem do partido, principalmente quando este se fortalece através das vitórias eleitorais.

Além do mais, não obstante, nem toda produção intelectual é embebida em engajamento político partidário ou político ideológico e, principalmente estas é que continuam a ser contribuições fundamentais válidas dos intelectuais para o desenvolvimento do pensamento complexo.

Toda suspeição contida no discurso dos parágrafos anteriores pode parecer exagerada e, o leitor mais intelectualizado pode até identificar um fundo de cunho ideológico marxista nelas, donde, de fato, elas foram extraídas. Todavia, elas podem ser, também, algo absolutamente salutar e, fazer parte, inclusive, da metodologia científica que tem sua origem no pensamento de Descartes, e que foi posteriormente desenvolvida empiricamente pelo físico inglês Isaac Newton. René Descartes propôs chegar-se à verdade através da dúvida sistemática e da decomposição do problema em pequenas partes, características que definiram a base da pesquisa científica.

Lê-se no livro o “Discurso do Método”:

“... E como a multiplicidade de leis serve frequentemente para escusar os vícios, de sorte que um estado é muito melhor governado quando, possuindo poucas, elas são aí rigorosamente aplicadas, assim, em lugar de um grande número de preceitos dos quais a lógica é composta, acrediteis que já me seriam bastante quatro, contanto que tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma vez só de observá-los.

O primeiro consistia em nunca aceitar, por verdadeira, coisa nenhuma que não conhecesse como evidente; isto é, devia evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; e nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão claramente e tão distintamente ao meu espírito que não tivesse nenhuma ocasião de o pôr em dúvida.”

Também dos pilares do pensamento científico considera Princípio da Falseabilidade, onde as hipóteses devem ser sempre testáveis (falseáveis), o que se aplica a todas as hipóteses científicas, desde as mais simples conjecturas, até àquelas elevadas à categoria dos postulados, para o cientista sincero, tudo que se acredita como verdadeiro deve estar sempre pronto a passar por testes de falseabilidade, sempre que requerido, incluindo ele próprio e sua pressuposta autonomia, seja como indivíduo ou como classe. A ocorrência de penas um novo fato verificável, contudo contraditório, é suficiente para que as ideias teóricas conflitantes se tornem passíveis de ser compulsoriamente recicladas ou mesmo abandonadas.

Não obstante, há que se cuidar para não se cair no estreitamento cego do anti-intelectualismo, que descreve um sentimento de hostilidade em relação a intelectuais e seus objetos de pesquisa. Isto pode ser expresso de várias formas, tais como ataques aos méritos da ciência, educação, arte ou literatura, coisas que só resultam na ampliação da alienação dos saberes da maioria.

Em geral, o anti-intelectualismo se justifica mediante os argumentos ideológicos e pragmáticos, coisas que, em geral, não são produzidas pelas pessoas mais simples, mas sim, pelos próprios intelectuais, e que, no entanto, que acabam por motivar, entre outras coisas, o ressentimento de pessoas menos instruídas contra os eruditos e a hostilidade em relação ao trabalho realizado pelos intelectuais, como educação, pesquisa, crítica social e cultural, literatura, e a acusação de parasitismo social, apoiadas na ideia de que os intelectuais não teriam uma função econômica na sociedade, sendo esta última compreendida, portanto, de maneira organicista, e ainda acusações e condenações sumarias por subversão e morbidez, o que frequentemente ocorre em nações que se encontram debaixo de políticas autoritárias ou regimes de exceção.

Em geral, um intelectual é o pior inimigo de outro intelectual qualquer, e isso se torna ainda mais evidente, recorrente e perigoso entre os intelectuais ligados ao âmbito das ciências sociais, que permanecem, numa especie de eterno jogo de intelectualidade, divididos entre as correntes de direita e correntes de esquerda. É notório o fato de ocorrência que tristes eventos de anti-intelectualismo já tenham existido no território de nações dotadas de classes dominantes de tendências ideológicas as mais diversas, como os EUA e a antiga URSS, igualmente.

Anti-intelectualismo geralmente é expressado nas comunidades por declarações de "diferença", isto é, os intelectuais são ditos como "não sendo um dos nossos". Estes que desconfiam de intelectuais, os representam como um perigo para a normalidade, insistindo que se tratam de estranhos com pouca empatia pelas pessoas comuns.

Isto historicamente tem resultado em intelectuais sendo retratados como membros arrogantes de um diferente grupo social. É comum para comunidades, em geral, vincular a ideia de intelectualidade com grupo de estrangeiros residentes ou de membros de minorias étnicas presentes. Já, em comunidades rurais, por exemplo, intelectuais talvez sejam vistos como "invejosos da cidade" que conhecem pouco do vilarejo e seus modos.

Comunidades religiosas fundamentalistas tendem a vincular intelectuais com a promoção do ateísmo, enquanto os modos sexuais dos intelectuais também são colocados em duvida, onde são suspeitos de promiscuidade, tendências homossexuais ou falta de interesse por sexo. Notavelmente, quem condena intelectuais tende vinculá-los não com apenas uma, mas uma combinação destas características acusatórias.

Juntamente com tudo isto, intelectuais podem ainda ser vistos, de modo absurdo, como sujeitos a instabilidade mental, com seus críticos insistindo na existência de uma correlação médica entre e genialidade e insanidade.

O intelectual nunca deve perder de vista que, os fatos científicos, embora não necessariamente reprodutíveis, devem ser sempre, de alguma forma, verificáveis. Neste aspecto as ciências naturais geralmente estão em permanente vantagem, se comparadas às ciências sociais. Tanto o erro quanto o engano, assim como a fraude deliberada, existem em ambas os campos mas, as ciências naturais tendem a ser menos susceptíveis a isso, apesar de não serem isentas.

Um caso exemplar noticiou-se recentemente, neste ano de 2012, sobre a confirmação final autoria de uma fraude científica cujo mistério já dura por exatos cem anos, envolvendo a assim chamado “Homem de Piltdown” que era formado por fragmentos de um crânio e de uma mandíbula recuperados nos primeiros anos do século XX de uma mina de cascalho em Piltdown, vila perto de Uckfield, no condado inglês de Sussex. Especialistas da época afirmaram que os fragmentos eram restos fossilizados de uma até ali desconhecida espécie de homem primitivo. A denominação latina de Eoanthropus dawsoni foi dado ao novo espécime.

A significância do espécime permaneceu objeto de controvérsia até que, com o avanço da ciência, foi denunciado e declarada em 1953 como uma fraude, consistindo, na verdade, da mandíbula inferior de um símio combinada com o crânio de um homem moderno, totalmente desenvolvido. Segundo os relatórios, também foi utilizada uma lima para desgastar os dentes a fim de parecerem mais velhos, bem como os ossos (ou parte destes) foram submetidos a substâncias químicas com o mesmo objetivo. Foi sugerido que a fraude havia sido obra da pessoa tida como sua descobridora, Charles Dawson (1864-1916), sob cujo nome foi batizada. Este ponto de vista tem sido questionado e muitos outros candidatos têm sido propostos como os verdadeiros criadores da contrafação mas, o fato é que agora, cem anos depois que o público britânico ter sido enganado pela apresentação do mais famoso fóssil falso de todos os tempos, um grupo de cientistas quer descobrir, de uma vez por todas, os responsáveis pela fraude, alardeada na imprensa popular como “a fraude do século”.

Assim, como vimos, mesmo no seio das ciências empíricas, por vezes também chamadas de reais, fáticas ou factuais, que se encarregam de estudar os fatos e fenômenos naturais em si, colocando a aparte as questões sociais humana, as fraudes podem existir e permanecer por um certo tempo. Todavia, por se encontrarem apoiadas na observação e na experimentação, geralmente não implicam em considerações mais rigorosas quanto à unicidade e fronteiras da ciência, sendo o método científico facilmente compatível com a metodologia específica a cada uma das subáreas neste grupo, qualquer que seja a escolhida, e por tal seguido em essência e capaz de desmascaram as fraudes com relativa facilidade.

Já, com respeito as ciências sociais, estas estudam os aspectos sociais do mundo humano, ou seja, a vida social de indivíduos e grupos humanos. Isso inclui a antropologia, os estudos da comunicação, a economia, a geografia humana, a história, a linguística, as ciências políticas, a psicologia e a sociologia, e, embora o alvo de estudo delas seja um alvo científico legítimo, a metodologia específica empregadas por muitas subáreas de estudo encerradas neste grupo, muitas vezes exigem importantes considerações a respeito dos pilares da ciência, principalmente quanto ao associado às suas fronteiras. Ao se considerarem as ciências sociais não é raro encontrarem-se estudos no limite daquilo que se pode considerar científico. Em miúdos, as ciências sociais serão sempre mais polemicamente problemáticas e susceptíveis a fraudes e enganos do que as ciências naturais.

A boa coisa a se fazer é que o enfoque principal do trabalho do cientista social se auto regule, no sentido de se manter, sempre, a favor da promoção da emancipação humana, debaixo de um clima de respeito intersocial mas, desvendando com denodo as diversas formas efetivas de injustiça e de tirania social, e as reproduções de abusos e de opressão, seja de seres humanos contra seres humanos, ou seja de seres humanos contra a o restante da natureza. Os intelectuais das ciências sociais são os que mais devem zelar, não apenas pela sua autonomia, mas também pela responsabilidade social do produto das suas ideias. Uma fraude em ciências sociais costuma causar a humanidade um prejuízo incomparavelmente maior do que uma fraude em ciências naturais.

Para fazer frente a tal acréscimo de responsabilidade, o cientista social é aquele que mais deve dar atenção às tomadas de decisões para ações inovadoras que promovam o desenvolvimento da sua intelectualidade em inteligência, mesmo não esperando ser, em nada, ainda melhores remunerados por isso do que já são. Esta é uma dívida social que eles têm para com o todo da sociedade e, considerando ainda o fato que, em países importantes como o Brasil, os cientistas sociais já são muito mais valorizados e melhores pagos do que os cientistas naturais. Principalmente aqueles intelectuais cujo trabalho é de cunho predominantemente tecnológico são, de modo lamentável, muito pouco valorizados aqui no Brasil.

Assim, de modo algum os intelectuais devem agir como meros serviçais dos poderes instituídos, por mais que eles encontrem afinidade de pensamento com a corrente ideológica deste poder mas, sim, esforçar-se em manter um posicionamento de críticos desses poderes, mesmo quando elogiando-os mas, sem nunca permitir levar-se pela prostituição intelectual. Este é o papel do intelectual que supera os seus interesses imediatos e egoístas e passa a defender os interesses gerais da humanidade, que são também seus interesses, contribuindo, assim, com a emancipação humana.

É algo paradoxal que, na mesmo época em que tanto se valoriza a propriedade e o capital intelectual nas sociedades, seja também a mesma época em que se aventa a respeito da obsolescência da função do intelectual no mundo. Na modernidade o intelectual se encontra presente e funcional, porém, transformado evoluído, adaptado a realidade do seu tempo. No site oficial do ministério da cultura brasileiro, podemos encontrar a postagem de uma interessante crônica baseada em entrevista de autoria de Alexandre Matias, que é jornalista e editor do caderno Link do jornal O Estado de S. Paulo. Sob o título “Intelectual nerd ou nerd intelectual?” o autor, juntamente como o seu entrevistado (Steven Berlin Johnson é um escritor norte americano, autor de obras populares sobre de ciências e tecnologias), nos dá algumas pistas de como decorre esse processo de adaptação do Intelectual moderno e sua função.

O mais novo e promissor paradigma envolvendo a condição dos intelectuais, é o “empreendedorismo intelectual”. O empreendedorismo intelectual é uma filosofia e uma visão de educação de visualização de intelectuais, principalmente os acadêmicos, como "inovadores" e "agentes de mudança." Ele se concentra na criação de colaborações multidisciplinares e multi-institucionais destinadas a produzir avanços intelectuais, com uma capacidade para fornecer soluções reais para os problemas e necessidades da sociedade. Empreendedorismo é o envolvimento intelectual acadêmico com o objetivo de mudar a vida.

O empreendedorismo intelectual expande a missão das instituições de ensino superior de "avançar as fronteiras do conhecimento" e "preparar os líderes do amanhã" para também "servir como motores do desenvolvimento econômico e social". Nesse processo, o papel do docente e do aluno evolui de o de "provocador intelectual" para se tornar o que poderia ser chamado de um "empreendedor intelectual". Empreendedorismo intelectual inclui uma prontidão para buscar oportunidades, assumir a responsabilidade associada com cada um e tolerar a incerteza que vem com o início de uma inovação genuína. Empreendedorismo intelectual muda o modelo e o enfoque do ensino superior de "aprendizagem – certificação - direito" para "descoberta – propriedade - prestação de contas."

O empreendedorismo intelectual tem como premissa a crença de que tanto a inteligência não se limita à academia, quanto o e empreendedorismo não se restringe ou sinônimo de negócio. Empreendedorismo é um processo de inovação cultural. Embora a criação de riqueza material seja uma expressão de empreendedorismo, em um nível mais profundo do empreendedorismo, ele é uma atitude para envolver o mundo. Empreendedores intelectuais, quer de dentro quer de fora das universidades, assumem riscos e aproveitam as oportunidades, descobrem e criam conhecimento, inovam, colaboram e resolvem problemas em qualquer tipo de espaços social: empresarial, governo, sem fins lucrativos e educação.

Empreendedores intelectuais entendem que uma verdadeira colaboração entre as universidades e o público equivale a um incremento de "acesso" para os ativos intelectuais da academia. É mais do que "transferência de conhecimento", a exportação de soluções cuidadosamente embrulhados rolando fora do campus via uma correia transportadora definidamente direcionada. A colaboração neste novo paradigma exige humildade e respeito mútuo, a propriedade conjunta de aprendizagem e a cocriação de um potencial inimaginável para a inovação, qualidades que moverão as universidades, além do sentido típico elitista de "serviço". Quanto ao conceito de conhecimento, depois de tudo, envolve a integração de teoria, de prática, mas também de produção.

A iniciativa de empreendedorismo intelectual é defendida pelo professor Richard Cherwitz da Universidade do Texas, em Austin. No Brasil, recentemente, a Agência de Inovação Inova Unicamp lançou o programa Inova Descobre, para fomentar iniciativas empreendedoras de estudantes de graduação e pós-graduação da universidade brasileira.

Apesar de ser um grande prazer ouvir falar em iniciativas como estas, eu não consigo evitar pensar numa eventual ocorrência de relativização dos seus possíveis resultados. Acontece que, tanto o empreendedorismo, quanto o intelectualismo, nomes que veiculam um conjunto variado de sentidos, são vocações, dons e talentos naturais. Não se pode criar um empreendedor a partir de alguém que não tenha esse talento, nem se pode criar um intelectual, a partir de alguém que não tenha vocação para isso. Todavia, ambos podem ser desenvolvidos ou aprimorados, desde que se tenha o dote da vocação, o dom e talento natural, capacitação que transcende ao produto da educação.

Nos idos da década 1920, o filósofo, cientista social e político italiano Antonio Gramsci, criou a definição daquilo que deveria ser o “intelectual orgânico”. Segundo a definição gramsciana, enquanto o intelectual tradicional é aquele que se vincula a um determinado grupo social, instituição ou corporação e que expressa os interesses particulares compartilhados pelos seus membros, o intelectual orgânico seria aquele que provém, originalmente, de uma determinada classe social, e que se manteria vinculado a ela por tempo indeterminado, atuando como porta-voz da ideologia e dos interesse daquela mesma classe social. Na visão de Gramsci, tal intelectual seria o responsável maior pela nova forma do Estado e da sociedade. Para isso a classe operaria, que deveria ser aquela que encabeçaria as mudanças sociais, precisaria produzir os seus intelectuais orgânicos, que atuariam como "funcionários da superestrutura", terminando por moldar o mundo à imagem e semelhança da sua classe fundamental.

Na visão de Gramsci, a luta da classe operária seria no sentido de afirmar esse novo intelectual, e apoiá-los em seu confronto por hegemonia e captura frente aos pré existentes intelectuais tradicionais. Mas, o fato é que, até o presente momento, em nenhuma sociedade humana conhecida, verificou-se que as classes operárias produziram, de modo natural e espontâneo, intelectuais orgânicos de modo que caracterizasse a formação do Estado revolucionário idealizado por Gramsci, nem é correto identificá-los com atuais intelectuais dos partidos de esquerda ou aos seus militantes.

Todavia, numa avaliação em paralelo com relação a moderna concepção do intelectual empreendedor, podemos constatar um mérito desta ideologia, na medida em que ela foi a primeira a definir que este novo tipo de intelectual (no caso o intelectual orgânico) não seria mais afastado do mundo produtivo ou encharcado de retórica abstrata, mas capaz de ser, simultaneamente, especialista, político e dirigente, dentro da sua própria classe.

Assim, pelos mesmos motivos que o intelectual orgânico nunca vingou naturalmente, programas de empreendedorismo intelectual só poderão ter sucesso em desenvolver e aperfeiçoar vocações, dons e talentos naturais pré existentes.

“Tão boa é a sabedoria como a herança, e dela tiram proveito os que vêm o sol. Porque a sabedoria serve de defesa, como de defesa serve o dinheiro; mas a excelência do conhecimento é que a sabedoria dá vida ao seu possuidor.” Eclesiastes 7:11-12, sobre inteligência espiritual.

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Este trabalho de André Luis Lenz, foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - CompartilhaIgual 3.0 Não Adaptada.
 
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