No nosso
dia a dia, fazemos um uso muito frequente de termos que fazem parte
da ampla classe dos “nomes”, quer seja para identificar seres e
objetos, com o ato de “dar nomes” (na verdade, em geral, apenas associar-lhes um nome já existente), rotulando os seres e objetos
palpáveis e impalpáveis que conhecemos ou idealizamos, ocasião em
que lançamos mão da classe gramatical de palavras denominada
substantivos ou, ainda que seja para caracterizar, especificar e especializar
os mesmos seres e objetos, ocasião em que empregamos palavras da
classe dos adjetivos.
Assim,
substantivos e adjetivos têm em comum o fato de fazerem parte da
ampla classe denominada, simplesmente, “nomes”. Existe uma
diferença entre eles, mas essa diferença só se evidencia
funcionalmente, quando aparecem combinados no sintagma nominal, numa
ordem linear, o substantivo funcionando como núcleo, e o adjetivo
como modificador. Quando isolados, nem sempre é possível uma
distinção tão nítida entre substantivos e adjetivos, porque eles
têm características mórficas semelhantes, isto é, flexionam-se
para expressar as categorias de gênero e número.
O termo
“Intelectual”, por exemplo, segundo professor e lexicógrafo brasileiro Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, é um termo derivado do latim
tardio (intellectuale), ou seja, o latim empregado em literatura dos
séc. III a V da era cristã, e que seguiu perdendo a força entre os
séculos VI e VII. Já, segundo a Wikipédia em língua portuguesa,
“intelectual” é um empréstimo linguístico originário da
França, onde foi usado pela primeira em no final do século XIX.
Buarque
de Holanda cita escritos do português José Duarte Ramalho Ortigão
(Porto, 24 de outubro de 1836 — Lisboa, 27 de setembro de 1915),
que aparecem na obra de compilação póstuma de textos de crítica
literária, publicada em 1943 (volume 1) e 1945 (volume 2), no
entanto, não me foi possível até o momento precisar a data do
escrito em que aparece, especificamente, a frase:
“A
infanta D. Maria era uma mulher espirituosa, de grande cultura
intelectual”
Já a
Wikipédia de língua francesa confirma que o termo "intelectual"
é de início recente e está diretamente ligada ao caso Dreyfus, um
polêmico caso de erro judiciário militar que agitou a França entre
1894 e 1906: a palavra foi adotada por Maurice Barres e Ferdinand
Brunetière, que em seus escritos anti-Dreyfus, nos quais pretendiam
denunciar o comprometimento de escritores como Émile Zola, Octave
Mirbeau e Anatole France em favor de Dreyfus, e em assuntos
militares e de espionagem, o que era estranho para eles.
Deste
modo, o tom do emprego inicial do termo “intelectual” teria sido
pejorativo, uma vez que tendia a levar os leitores a considerarem o
intelectual visto como um refugiado em pensamentos abstratos, que
perderia facilmente de vista a realidade e que lidaria com assuntos
que não lhe seriam familiares. Mas o próprio desfecho do caso
Dreyfus serviu de virtual desagravo contra tal significado de emprego
do termo.
Na
internet, existe referência a pelo menos mais uma obra literária,
mas que assinala o emprego do termo “intelectual”, como anterior
aos eventos na frança, mais especificamente, para o ano de 1857, na
Itália, na obra literária intitulada “Della Conoscenza
Intellettuale”, volume 1, publicada em 1857, sob a autoria de
Matteo Liberatore.
Além do
mais, a Wikipédia em língua italiana corrobora com Buarque de
Holanda, ao afirmar que o termo deriva do latim tardio
“intellectualis” (intelectual), um adjetivo que quer indicar o
que em filosofia tem relação com o intelecto e a sua atividade de
elaborar teorias e racionalizar métodos e, portanto, é
caracterizada como sendo separada da sensibilidade e da experiência,
consideradas de baixo nível cognitivo.
Na
concepção aristotélica, intelectuais foram definidos como aqueles
cuja virtude era a ciência, a sabedoria, a inteligência e a arte,
que permitiam a alma intelectiva alcançar a verdade. No campo da
metafísica, o termo foi, então, empregado para indicar o abstrato,
em oposição à concretude e materialidade.
Assim, ao
que tudo indica, parece a imprensa francesa apenas popularizou o
termo “intelectual”. Seja como for, o termo “intelectual”
trata-se, com certeza, de um empréstimo linguístico mas, em nada um
neologismo e, cuja origem conceitual, remonta a época do Liceu de
Atenas, para mais de três séculos antes de Cristo.
Um dos
principais espaços de atuação do intelectual é a Universidade e,
neste espaço o intelectual acadêmico desenvolve e realiza a sua
atuação. Todavia, um intelectual não precisa, necessariamente
surgir ligado a uma Universidade mas, sendo efetivamente um
intelectual produtivo, acabará, de algum modo, por fim, sendo ligado
a alguma delas. Este é o caso de muitos empreendedores que, apesar
de serem tidos sobretudo como empresários de sucesso, são também
notórios intelectuais. No final do ano de 1972, Steve Jobs, o
principal fundador da empresa desenvolvedora e produtora de
computadores Apple, ingressou na universidade Reed College em
Portland, Oregon, onde cursou formalmente apenas por seis meses e
anos mais tarde testemunhou: "Desistir foi a melhor coisa que
fiz. Pude me dedicar às coisas que eu realmente queria fazer."
Jobs
passou 18 meses frequentando o campus da Reed College, onde ganhou
permissão para acompanhar as aulas como observador. Entre os cursos
assistidos por Jobs estava um curso de caligrafia que anos mais tarde
influenciaria na tipografia do Macintosh. Sobre o curso de
Caligrafia, Steve
Jobs falou: "Aprendi sobre letras com serifas e sem serifas,
sobre como variar a quantidade de espaço entre diferentes
combinações de letras, sobre o que torna uma tipografia excelente.
Aquilo foi lindo, histórico, artisticamente sutil, de uma maneira
que a ciência não havia podido captar ainda, e achei fantástico.”
Steve
Jobs teve participação direta na elaboração de poucos livros,
sozinho mesmo ele não escreveu nenhum, mas orientou ou inspirou a
criação de várias duzias de obras. Jobs, morreu aos 56 anos de
idade vítima de cancro no pâncreas. "Saber que morrerei em
breve foi a mais importante ferramenta que encontrei para me ajudar a
tomar as grandes decisões da minha vida. Porque quase tudo –
expectativa, orgulho, medo do embaraço ou do insucesso – é
insignificante perante a morte, ficando apenas aquilo que é
realmente importante. Lembrar a inevitabilidade da morte é a melhor
forma de evitar a armadilha de pensar que se tem realmente alguma
coisa a perder", afirmou Jobs, enquanto agradecia um
doutoramento honoris causa recebido pela Universidade de Stanford em
2005. O mundo perdia um gênio visionário.
Se a
principal meta de um intelectual e produzir mudanças de pensamentos,
posturas e comportamentos nas pessoas e nas sociedades, então, tanto
Steve Jobs, quanto Jesus Cristo, foram notórios intelectuais. Se uma
externalidade do intelectual moderno é denotada por produzir, inovar
e gerir o capital e a propriedade intelectual, ou então dar inúmeras
palestras universitárias (mesmo sem ter um curso superior
formalmente concluído) então Jobs foi, realmente, um sumo
intelectual, com vantagens diferenciadas sobre o intelectual
acadêmico formatado, que consistiram nos seus mais elevados sensos
de empirismo, praticidade e empreendedorismo, não como únicos, mas
como principais meios de produzir inovação nas ciências e nas
tecnologias.
Na
prática, a definição do intelectual é realizada, principalmente,
por outros intelectuais e estes definem o termo segundo seus próprios
posicionamentos intelectuais, fato este que complexifica a definição.
Num conceito mais popular, o intelectual é definido a partir da
perspectiva do uso da palavra, pelo meio social no qual vive ou no
qual estabelece sua trajetória social.
Ao que
tudo indica, em seus primórdios, o termo “intelectual” foi
idealizado para ser empregado como um adjetivo, ou seja, uma palavra
que modifica um substantivo e que dá precisão ao seu sentido. Esse
processo constitui um mecanismo produtivo na língua, dada a
capacidade dos adjetivos de expandir e diversificar a ideia básica
definida pelos substantivos.
Uma
especialidade do adjetivo “intelectual” é que o substantivo que
o acompanha precisa ser, necessariamente, um ser ou uma entidade
capaz de raciocínio, apto a operação mental, discursiva e lógica,
de modo que, “intelectual” surgiu como um adjetivo para ser
associado, exclusivamente, a seres humanos, atribuindo-lhe o estado,
a qualidade e a característica de um “ser intelectual”.
No
entanto a popularização do termo desde o o final do século XIX
acabou por torná-lo, na prática, também um substantivo. Uma
palavra se torna substantivo simplesmente quando toma o lugar de um.
A distinção feita entre um substantivo e um adjetivo não é, em
geral, de significado (semântica) mas, sim, de função (sintaxe).
Adjetivos que se tornam substantivos são casos que acontecem com
frequência, por exemplo, dentro da gramática japonesa.
Também
um adjetivo pode derivar de um substantivo, o que resulta na evidente
existência de semelhanças morfológicas (de estrutura e de formação
das palavras) entre eles, que é algo que justifica o fato de que
ambos, adjetivos e substantivos, recebam a denominação comum de
“nomes”. Existem ainda casos de palavras que são, em geral,
substantivos, mas que podem ser usadas como adjetivos (substantivos
adjetivados).
Para a
classificação dos substantivos é adotado normalmente o critério
semântico e para os adjetivos, o critério sintático. Voltado para
o aspecto semântico das ocorrências de substantivos e adjetivos e
na transitoriedade entre eles, tanto no português do Brasil como em
outras línguas, alguns autores modernos tem buscado demonstrar que a
classificação das classes de palavras, conforme as gramáticas
escolares, não atende às necessidades do discurso, sobretudo,
devido a mistura de critérios semânticos, morfológicos e
sintáticos.
A
“intelectualidade”, substantivo feminino que pode significar
tanto o conjunto e a classe dos indivíduos intelectuais, como também
as faculdades intelectuais em si, muitas vezes é interpretado como
sendo “inteligência” mas, essa é uma interpretação bastante
questionável atualmente, uma vez que o conceito de “inteligência”
parece ser mais abrangente, envolvendo eixos cognitivos que vão além
da intelectualidade, como a competência, que é a capacidade do
indivíduo em agir eficazmente em um determinado tipo de situação,
apoiando-se em conhecimentos, mas sem se limitar a eles.
A
inteligência dota o indivíduo da capacidade de resolver situações
problemáticas novas mediante reestruturação dos dados perceptivos
e para isso, a inteligência envolve, ainda, o desenvolvimento de
habilidades, que decorrem das competências adquiridas e referem-se
ao plano imediato do saber fazer. Através do exercício das ações
e operações, as habilidades se aperfeiçoam e se interagem,
possibilitando nova reorganização das competências.
Atualmente
existe um consenso cientifico em torno de um conjunto de cinco
competências humanas básicas para a atividade educacional, que
são: “dominar linguagens”, “compreender fenômenos, “enfrentar
situações-problema”, “construir argumentações” e “elaborar
propostas”. Com o intuito de fomentar a formação e o
desenvolvimento de uma comunidade investigativa cientifica (uma
comunidade de intelectuais) através da educação, a próxima
competência inserida como básica, somada às que já foram
definidas, bem que poderia ser “investigar ciências”. Esta
competência, que é também relativamente básica mas, dependente
das anteriores elencaria, entre outras habilidades, as relativas a
investigação ou pesquisa, a síntese e a organização. Isso feito,
e já num nível mais elevado, abarcando todas as competências
anteriores, poderia aparecer uma competência que se apresenta como a
chave da sobrevivência e do sucesso, para o intelectual na
modernidade: o “empreender avanços intelectuais”.
Muitos
autores ainda costumam definir “competência” como sendo,
simplesmente, um conjunto de habilidades, mas essa definição pode
ser insuficiente e, portanto, mal interpretada, na medida em que se
percebe que o relacionamento entre estas duas entidades é
caracterizado por ser do tipo N:N, ou seja, um tipo de cardinalidade
que envolve um relacionamento “muitos para muitos”. Assim, além
de uma dada competência conter um conjunto de habilidades, uma dada
habilidade pode estar contida em uma variedade de competências. A
diferença entre elas pode se tornar tênue, enquanto o principal
diferencial se torna, tão somente, quanto ao aspecto, que é mais
geral nas competências e mais especifico nas habilidades.
Além
disso, o conceito moderno de inteligência envolve, também, um bom
êxito do bem estar emocional do indivíduo que a possui que, apesar
de serem considerados aspectos não cognitivos da inteligência,
dota-o da capacidade de reconhecer os próprios sentimentos e os dos
outros, assim como da capacidade de lidar com eles, percebendo e
exprimindo a emoção, assimilando-a ao pensamento, compreendendo e
racionalizando no contexto emocional, regulando as emoções em si
próprio e a sua volta, resultando em atitudes e posturas que levam o
individuo a viver de uma forma mais satisfatória.
Assim, a
intelectualidade se caracteriza por um avantajado desenvolvimento do
conhecimento científico, quer seja envolvendo apenas uma área
específica, quer seja das ciências factuais (empíricas), ou seja
da ciências formais e suas ferramentas para fazer ciências, quer
seja na área das ciências naturais, ou na área das ciências
sociais, ou mesmo atuando concomitantemente em múltiplas dessas
áreas, mas sempre associado a uma boa capacidade de comunicação e
de articulação dos frutos do intelecto produzidos.
No
entanto, a intelectualidade restringida a si própria pode resultar
em não ser positivamente produtiva para o próprio indivíduo que a
possui, caso ela não seja desenvolvida com certos cuidados pois,
quando a intelectualidade suprime a inteligência, há uma propensão
de o individuo passar a se autodestruir com os seus próprios
saberes.
Não
raro, muitos intelectuais passam a viver um estilo de vida que
reflete angustia e infelicidade, frequentemente recorrendo, inclusive, a externalidade de conduta desenfreada, tais como ao abuso de álcool e outras drogas e promiscuidade sexual, simplesmente por se descuidarem da
premente necessidade de aprender a lidar com a sua própria
intelectualidade, o que acaba por torná-los, de certo modo, improdutivos até mesmo para os que os seguem mais de perto. Isso pode ocorrer com
qualquer intelectual mas, parece existir uma tendência de ocorrer de
maneira mais acentuada àquele dedicados às ciências sociais.
Em sua
obra literária escrita em estilo de crônica pessoal e intitulada "A
Educação do Estóico", o escritor português Fernando Pessoa
(Barão de Teive) escreve:
“Não
há maior tragédia do que a igual intensidade, na mesma alma ou no
mesmo homem, do sentimento intelectual e do sentimento moral. Para
que um homem possa ser distintivamente e absolutamente moral, tem que
ser um pouco estúpido. Para que um homem possa ser absolutamente
intelectual, tem que ser um pouco imoral. Não sei que jogo ou ironia
das coisas condena o homem à impossibilidade desta dualidade em
grande. Por meu mal, ela dá-se em mim. Assim, por ter duas virtudes,
nunca pude fazer nada de mim. Não foi o excesso de uma qualidade,
mas o excesso de duas, que me matou para a vida.”
Este
pensamento expressa a ideia de que intelectualidade e moralidade
talvez sejam incompatíveis mas, revela, sobretudo, que o Barão de
Teive, que é possivelmente o último semi-heterônimo criado por
Fernando Pessoa, adotado para a autoria desse único manuscrito,
reuniu, como ele próprio expressa, de forma trágica, as várias
obsessões do seu criador.
Fernando
Pessoa, um dos maiores escritores portugueses mundialmente
conhecidos, que evolucionou toda a produção poética portuguesa do
século XX, era um aristocrata buscando e rebuscando traços de
sangue azul na sua linhagem paterna e promulgando uma teoria de
aristocracia interior; era solteiro, abastado e tinha grande
dificuldade de lidar com a sexualidade.
Segundo
Richard Zenith, editor e autor do post-mortem do livro que trás o
tal escrito, o Barão de Teive assumiu o aspecto mais perigoso do seu
criador - a razão sem freio, que o levou à conclusão de que a
conduta racional da vida era impossível, e sendo assim o suicídio
era a saída que a razão lhe impunha.
Traduzindo
sucintamente, sem duvida Fernando Pessoa (Barão de Teive) foi um
intelectual, mas subjugado pela sua própria conduta racional e,
impossibilitado de dominar os seus sentimentos e emoções,
confessava-se não ser um homem inteligente e, menos ainda, realizado
e feliz, o que conduz a conclusão que, de fato, intelectualidade não
significa, necessariamente, inteligência.
Alguns
autores atuais já passam, inclusive, a incluir no rol da
inteligência, aspectos como consciência interior e espiritualidade.
Nem só razão, nem só emoção. Para o indiano Amit Goswami, a base
da criatividade é a inteligência que baseia-se, também, nas
percepções sutis e na intuição, por exemplo, ideia compartilhada pelo líder religioso conhecido como Osho Bhagwan Shree
Rajneesh, que vai além, afirmando que Inteligência é o crescimento
da consciência interior, não tendo nada a ver com conhecimento.
Para estes autores, a inteligência está associada com
meditatividade, com os valores e virtudes, e com os arquétipos que
definem verdade, beleza, amor, justiça, bondade, entendendo que a
consciência é a base da existência.
A
consideração de temas correlatos a isso vem crescendo, inclusive,
entre os cristãos. O pastor evangélico Silas Malafaia, que além de
teologia é formado em psicologia pela Universidade Gama Filho,
publicou a poucos anos um pequeno livro intitulado “Inteligência
Espiritual”, com enfoque para o fato de que a inteligência humana
tem uma dimensão espiritual e que a fé cristã é uma manifestação
inteligente.
Apenas
visando despertar uma reflexão descompromissada no leitor, eu
coloco, ainda, as seguintes provocações conjecturais: As
bibliografias de Fernando pessoa expõem, de um modo geral,
aproximadamente, o seguinte (seguimentos baseado em Wikipedia):
“Pessoa e o ocultismo: Fernando Pessoa interessava-se pelo
ocultismo e pelo misticismo, com destaque para … (denominações
religiosas) … embora não se lhe conheça qualquer filiação
concreta ...”; “O seu poema hermético (estudo e prática da
filosofia oculta e da magia) mais conhecido e apreciado entre os
estudantes de esoterismo intitula-se ...”; “Tinha o hábito de
fazer consultas astrológicas para si mesmo ...”; “Apreciava
também o trabalho do famoso ocultista … Os seus conhecimentos de
astrologia impressionaram … “
Quanto a
Jobs, apresenta-se o seguinte: “Em seu período acadêmico, Jobs
começa a ler livros sobre espiritualidade e iluminação e se torna
adepto de dietas compulsivas. Jobs andava descalço pela
universidade, não tomava banho e devolvia garrafas de refringente
para receber alguns trocados. Aos domingos realizava caminhadas até
o centro … (denominação religiosa) … para ganhar uma refeição
quente. Quando precisava de dinheiro, fazia pequenos reparos
eletrônicos nos equipamentos do laboratório de Psicologia. Em 1974
consegue um emprego na Atari. A empresa serviria de trampolim para
que Jobs alcançasse a Europa e depois a Índia, onde faria uma
jornada espiritual …”
Me parece
claro que ambos intelectuais viveram cônscios de que eles tinham
algum tipo de necessidade espiritual que precisa ser, de alguma
forma, atendida. Evidencia-se que ambos buscaram lidar com o
sofrimento fazendo dele um aprendiza espiritual! De modo que,
postulados que propõem estabelecer relacionamentos entre inteligência e espiritualidade, a
mim não parecem, em nada, absurdos.
Assim, os
intelectuais não se caracterizam por sua elevada “inteligência”
mas, sim, pela posição que assumem para si mesmos, no conjunto das
relações sociais. Um indivíduo pode ser um intelectual
faltando-lhe, até mesmo, algumas das competências mais básicas,
além das consequentes habilidades associadas. Alguém pode ser um
intelectual, sendo falho ou mesmo desprovido de inteligência
emocional, ou ainda de inteligencia espiritual.
Dedicar-se
a atividades intelectuais, mesmo que resulte em prazer ao indivíduo
que o faz, assim como o hábito do uso de drogas o faz com os seus
usuários, não requer que haja como resultado um estado de felicidade ou mesmo de autossatisfação no
modo de vida do intelectual, nem mesmo garante a posse de uma postura
ética, diante dos objetos-alvo dos seus estudos científicos.
Por conseguinte, é apenas através do seu papel na divisão social
do trabalho que podemos entender melhor quem são os intelectuais,
dentro de uma visão da intelectualidade enquanto classe social.
Podemos,
a partir desta visão, definir os intelectuais como uma classe
social, composta pelos indivíduos dedicados exclusivamente ao
trabalho intelectual. Tal classe social assume formas diferentes em
sociedades diferentes. Os intelectuais sempre tiveram uma posição
privilegiada no interior da divisão social do trabalho.
Historicamente, os intelectuais, dentre estes notadamente os
“ideólogos”, surgiram a partir da expansão da divisão social
do trabalho e sempre estiveram, ou ao lado da classe dominante, ou em
apoio às forças de oposição a esta.
Na
sociedade escravista, os intelectuais eram, em sua maioria, os
filósofos; na sociedade feudal, os teólogos e, na sociedade
moderna, os cientistas. A forma de remuneração, ou os meios de
sobrevivência, variam de acordo com o modo de produção, mas sempre
possuem rendimentos superiores aos das classes operárias. Portanto,
trata-se de uma classe social que ocupa determinado papel no processo
de reprodução da sociedade e privilégios derivados disto. A sua
constituição e dinâmica depende da totalidade das relações
sociais e do modo de produção que está na base de uma determinada
sociedade.
Isto quer
dizer que existem semelhanças entre os intelectuais nos diversos
modos de produção mas também diferenças. Obviamente que o papel e as características da intelectualidade, enquanto classe social poderia,
devido a tais diferenças, gerar distinções nas terminologia usadas
para defini-los. Sem dúvida, assim como se pode utilizar a expressão
“trabalhadores” para se referir tanto aos escravos da sociedade
antiga quanto aos operários da sociedade moderna ou a expressão
genérica de “classe dominante” para os variados grupos que
sucedem um ao outro no poder, o mesmo se pode fazer com a
intelectualidade.
Isto é
derivado de um necessário nível de generalidade maior da expressão, que deve,
a cada forma de sociedade existente, receber um tratamento
diferenciado, pois ao lado das semelhanças existem as diferenças.
Todavia, num grau maior de generalidade, é fato que os intelectuais, em todas as
sociedades, em sua maioria, fazem parte das classes sociais mais
privilegiadas, sendo ainda, frequentemente, utilizadas como uma
classe auxiliar pela classe dominante, dedicando-se exclusivamente ao
trabalho intelectual que favoreça os interesses dessa, da qual
se tornam servidores e dependentes.
O
surgimento dos intelectuais ocorre com a separação entre trabalho
intelectual e manual. Os intelectuais passam a se dedicar ao trabalho
intelectual e, frequentemente, o produto do seu trabalho é de cunho
ideológico. Em geral, os intelectuais não produzem a ideologia em
si mas, sim, processos de sistematização dela, transformando as
representações lúdicas existentes em saber sistemático, como
filosofia, teologia, ou outra forma de ciência. Por exemplo, os economistas traduzem
para a linguagem da ciência econômica, as representações
cotidianas dos agentes do processo econômico.
Uma
ideologia, uma vez produzida, passa a legitimar as relações sociais
existentes, cumprindo o papel de naturalizá-las e universalizá-las, sob
uma forma também considerada legítima, a forma científica,
filosófica, teológica. Assim, um saber legítimo realiza a
legitimação das relações sociais existentes. O discurso dos
intelectuais possui uma legitimidade devido ao fato de ser
considerado verdadeiro e superior. A legitimidade do discurso do
intelectual se encontra na sua autodeclarada capacidade de
monopolizar a veiculação da verdade, através da razão, da
interpretação da palavra de Deus, da pesquisa empírica, ou de
qualquer outra justificativa, ela mesma, ideológica em si, mas
aceita socialmente.
Assim, os
intelectuais estão frequentemente ligados à burocracia e a passagem
de um intelectual para a burocracia, estatal ou privada, é bastante
corriqueira, tendo em vista que o “capital cultural” pode se
tornar um meio de se conquistar cargos de direção no Estado ou nas
instituições da sociedade. Numa determinada sociedade em que a
produção intelectual esteja predominantemente subordinada aos
interesses da classe dominante, é evidente que o papel da maioria
dos intelectuais será o de conservador, e não o de setor
progressista da sociedade. Neste caso, a educação, a produção
científica, etc., deixam de ser elementos que contribuiriam com a
emancipação humana e os intelectuais, por sua posição social e
pelos interesses e valores derivados dela, acabam por se tornar
agentes da conservação e não da transformação.
Neste
sentido, a suposta “liberdade” ou “autonomia” dos
intelectuais, como defendeu o sociólogo Karl Mannheim, se torna uma
ficção, e eles passam a ser tão condicionados e determinados
quanto qualquer outra classe social. Os intelectuais passam a ter os
seus interesses próprios, particulares, ligados aos interesses da
classe dominante e, prevalecendo a manutenção de uma posição
privilegiada na sociedade, altos salários, status, etc.
Se a própria existência dos intelectuais e de seus privilégios depender
da conservação da sociedade, isso significa que os intelectuais
estarão indissoluvelmente ligados ao poder e sem autonomia. No
entanto, pode faz parte da lógica dos seus interesses produzir um
discurso de sua autonomia, pois assim escamoteia sua ligação com o
poder e ganha legitimidade. A ideia da autonomia dos intelectuais é
uma ideologia produzida pelos intelectuais e para os intelectuais,
que pode ser exemplificada pela ideologia a respeito da “neutralidade
de valores” na ciência mas, também pode ser puro interesse da
classe dominante. Neste sentido, os intelectuais são meramente uma
classe auxiliar da burguesia, devendo, todavia ocultar esta relação.
A tese da
autonomia dos intelectuais já foi defendida inúmeras vezes e sob as
mais variadas formas. Realmente, os intelectuais possuem uma
autonomia relativa, como todos os indivíduos, grupos e classes
sociais em nossa sociedade. No entanto, não raro, os intelectuais
possuem o desejo de se tornar burocratas (dirigentes), ou a própria
nova classe dominante e os burocratas buscam legitimar sua dominação
através do discurso sobre o saber. Aqueles que sabem devem dirigir,
ou, como já dizia Bacon, “saber é poder”. Daí a suposta eterna
aliança, a cumplicidade entre burocratas e intelectuais.
Poucos
são os intelectuais que denunciam a si mesmos. Geralmente a crítica
aos aberta aos intelectuais é proveniente de não-intelectuais. Obviamente que
estamos nos referindo aos intelectuais enquanto classe social, isto
é, aqueles que exercem a função de intelectuais, e não qualquer
pessoa que realiza uma produção intelectual, pois nesta segunda
acepção mais ampla, se não todos mas, um número muito maior de
indivíduos são inseridos e considerados intelectuais, entre os quais eu me incluo.
Uma das
críticas mais fortes aos intelectuais enquanto classe social foi a
realizada por Jan Wanclaw Makhaïsky (1981), que realizou uma análise
de cunho marxista dos intelectuais, observando os seus altos
rendimentos e a fonte de tais rendimentos: a renda nacional e esta,
por sua vez, é oriunda da exploração capitalista, isto é, da
extração de mais valor da classe operária. O nível de vida quase
burguês dos intelectuais é derivado de sua apropriação de parte
do lucro patronal, de parte do mais valor global. Segundo a analise,
se esta intelectualidade se diz “socialista”, seria porque ela
visa concentrar os meios de produção nas mãos do Estado, para
assim garantir a apropriação de uma parte maior do mais valor
global.
Makhaïsky
anunciou profeticamente o destino da Rússia ao criticar o
bolchevismo e ser perseguido pelo Partido Bolchevique. A Revolução
Bolchevique e a burocratização que lhe acompanhou gerou diversos
estudos sobre a “nova classe” e sobre a burocracia e a
intelectualidade. Em 1973/1974, o sociólogo Ivan Szelenyi e o
romancista George Konrád escreveram Os Intelectuais e o Poder,
expressando a tese de que a intelligentsia se torna uma classe que
cada vez mais reduz sua distinção com a burocracia no “socialismo
real” do Leste Europeu (Konrád e Szelenyi, 1981). Estes e muitos
outros estudos tematizaram a intelectualidade e revelaram, com maior
ou menor exatidão, as relações entre esta classe social e o poder.
Porém, é
preciso deixar claro que existe uma distinção entre indivíduo e
classe social. A intelectualidade, enquanto classe social, é
conservadora, o que não quer dizer que todos os intelectuais, ou
seja, cada um dos indivíduos pertencentes a esta classe, sejam
conservadores. O indivíduo possui uma autonomia relativa e,
dependendo do desenvolvimento de sua consciência, valores,
interesses, ele pode, mesmo pertencendo a uma classe social
conservadora, romper com a reprodução das concepções desta.
Obviamente que para aqueles que realizam tal processo, é costuma ser
reservada uma considerável perda de posição social, de modo de
vida e todos os valores, interesses, etc., derivados de pertencer a
classe da intelectualidade, e que predispõe todos os indivíduos que
a compõe ao conservadorismo.
No
entanto, vários indivíduos podem romper, seja devido ao seu
processo histórico de suas vidas, por relações familiares, por
desenvolvimento da consciência, por ligações com pessoas, pela a
percepção de que apesar dos privilégios também está submetido à
alienação, ao modo de vida degradado do mundo contemporâneo e ao
processo de desumanização, entre outros fatores, podem contribuir
com isso. Todas as classes sociais produzem seus representantes
intelectuais, que podem ou não exercer a função de intelectual,
isto é, indivíduos que produzem concepções (que são de seu
interesse).
Esta
ruptura pode ser parcial ou total. Um intelectual profissional, por
pertencer aos extratos mais baixos de sua classe social, pode se
revoltar contra sua condição e assim assumir um discurso crítico e
até se aliar a setores que pregam a transformação social, o que
não significa que tenha se tornado autenticamente um intelectual
revolucionário, pois sua produção intelectual ainda fica limitada
por não realizar uma superação completa, já que o seu
posicionamento não é derivado de uma identificação dos seus
interesses com os das demais classes mas, sim um descontentamento
individual que proporciona uma revolta individual sem grande alcance
e que, se for compensado, pode “mudar de lado”.
Este é o
caso de diversos intelectuais ligados a partidos políticos,
principalmente de “esquerda”, e é isso que possibilita a ideia
do caráter corruptível de tais intelectuais, embora existam aqueles
que são dissimulados, que tão logo assumam algum cargo mostram sua
verdadeira face, existem também os iludidos, que são sinceros mas
que não conseguem ultrapassar determinadas concepções – não se
aliando com a direção e nem rompendo com o partido – e geralmente
ficam à margem do partido, principalmente quando este se fortalece
através das vitórias eleitorais.
Além do
mais, não obstante, nem toda produção intelectual é embebida em
engajamento político partidário ou político ideológico e,
principalmente estas é que continuam a ser contribuições
fundamentais válidas dos intelectuais para o desenvolvimento do
pensamento complexo.
Toda
suspeição contida no discurso dos parágrafos anteriores pode
parecer exagerada e, o leitor mais intelectualizado pode até
identificar um fundo de cunho ideológico marxista nelas, donde, de
fato, elas foram extraídas. Todavia, elas podem ser, também, algo
absolutamente salutar e, fazer parte, inclusive, da metodologia
científica que tem sua origem no pensamento de Descartes, e que foi
posteriormente desenvolvida empiricamente pelo físico inglês Isaac
Newton. René Descartes propôs chegar-se à verdade através da
dúvida sistemática e da decomposição do problema em pequenas
partes, características que definiram a base da pesquisa científica.
Lê-se no
livro o “Discurso do Método”:
“... E
como a multiplicidade de leis serve frequentemente para escusar os
vícios, de sorte que um estado é muito melhor governado quando,
possuindo poucas, elas são aí rigorosamente aplicadas, assim, em
lugar de um grande número de preceitos dos quais a lógica é
composta, acrediteis que já me seriam bastante quatro, contanto que
tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma vez só de
observá-los.
O
primeiro consistia em nunca aceitar, por verdadeira, coisa nenhuma
que não conhecesse como evidente; isto é, devia evitar
cuidadosamente a precipitação e a prevenção; e nada incluir em
meus juízos que não se apresentasse tão claramente e tão
distintamente ao meu espírito que não tivesse nenhuma ocasião de o
pôr em dúvida.”
Também
dos pilares do pensamento científico considera Princípio da
Falseabilidade, onde as hipóteses devem ser sempre testáveis
(falseáveis), o que se aplica a todas as hipóteses científicas,
desde as mais simples conjecturas, até àquelas elevadas à
categoria dos postulados, para o cientista sincero, tudo que se
acredita como verdadeiro deve estar sempre pronto a passar por testes
de falseabilidade, sempre que requerido, incluindo ele próprio e sua
pressuposta autonomia, seja como indivíduo ou como classe. A
ocorrência de penas um novo fato verificável, contudo
contraditório, é suficiente para que as ideias teóricas
conflitantes se tornem passíveis de ser compulsoriamente recicladas
ou mesmo abandonadas.
Não
obstante, há que se cuidar para não se cair no estreitamento cego
do anti-intelectualismo, que descreve um sentimento de hostilidade em
relação a intelectuais e seus objetos de pesquisa. Isto pode ser
expresso de várias formas, tais como ataques aos méritos da
ciência, educação, arte ou literatura, coisas que só resultam na
ampliação da alienação dos saberes da maioria.
Em geral,
o anti-intelectualismo se justifica mediante os argumentos
ideológicos e pragmáticos, coisas que, em geral, não são
produzidas pelas pessoas mais simples, mas sim, pelos próprios
intelectuais, e que, no entanto, que acabam por motivar, entre outras
coisas, o ressentimento de pessoas menos instruídas contra os
eruditos e a hostilidade em relação ao trabalho realizado pelos
intelectuais, como educação, pesquisa, crítica social e cultural,
literatura, e a acusação de parasitismo social, apoiadas na ideia
de que os intelectuais não teriam uma função econômica na
sociedade, sendo esta última compreendida, portanto, de maneira
organicista, e ainda acusações e condenações sumarias por
subversão e morbidez, o que frequentemente ocorre em nações que se
encontram debaixo de políticas autoritárias ou regimes de exceção.
Em geral,
um intelectual é o pior inimigo de outro intelectual qualquer, e
isso se torna ainda mais evidente, recorrente e perigoso entre os
intelectuais ligados ao âmbito das ciências sociais, que
permanecem, numa especie de eterno jogo de intelectualidade,
divididos entre as correntes de direita e correntes de esquerda. É
notório o fato de ocorrência que tristes eventos de
anti-intelectualismo já tenham existido no território de nações
dotadas de classes dominantes de tendências ideológicas as mais
diversas, como os EUA e a antiga URSS, igualmente.
Anti-intelectualismo
geralmente é expressado nas comunidades por declarações de
"diferença", isto é, os intelectuais são ditos como "não
sendo um dos nossos". Estes que desconfiam de intelectuais, os
representam como um perigo para a normalidade, insistindo que se
tratam de estranhos com pouca empatia pelas pessoas comuns.
Isto
historicamente tem resultado em intelectuais sendo retratados como
membros arrogantes de um diferente grupo social. É comum para
comunidades, em geral, vincular a ideia de intelectualidade com grupo
de estrangeiros residentes ou de membros de minorias étnicas
presentes. Já, em comunidades rurais, por exemplo, intelectuais
talvez sejam vistos como "invejosos da cidade" que conhecem
pouco do vilarejo e seus modos.
Comunidades
religiosas fundamentalistas tendem a vincular intelectuais com a
promoção do ateísmo, enquanto os modos sexuais dos intelectuais
também são colocados em duvida, onde são suspeitos de
promiscuidade, tendências homossexuais ou falta de interesse por
sexo. Notavelmente, quem condena intelectuais tende vinculá-los não
com apenas uma, mas uma combinação destas características
acusatórias.
Juntamente
com tudo isto, intelectuais podem ainda ser vistos, de modo absurdo,
como sujeitos a instabilidade mental, com seus críticos insistindo
na existência de uma correlação médica entre e genialidade e
insanidade.
O
intelectual nunca deve perder de vista que, os fatos científicos,
embora não necessariamente reprodutíveis, devem ser sempre, de
alguma forma, verificáveis. Neste aspecto as ciências naturais
geralmente estão em permanente vantagem, se comparadas às ciências
sociais. Tanto o erro quanto o engano, assim como a fraude
deliberada, existem em ambas os campos mas, as ciências naturais
tendem a ser menos susceptíveis a isso, apesar de não serem
isentas.
Um caso
exemplar noticiou-se recentemente, neste ano de 2012, sobre a
confirmação final autoria de uma fraude científica cujo mistério
já dura por exatos cem anos, envolvendo a assim chamado “Homem de
Piltdown” que era formado por fragmentos de um crânio e de uma
mandíbula recuperados nos primeiros anos do século XX de uma mina
de cascalho em Piltdown, vila perto de Uckfield, no condado inglês
de Sussex. Especialistas da época afirmaram que os fragmentos eram
restos fossilizados de uma até ali desconhecida espécie de homem
primitivo. A denominação latina de Eoanthropus dawsoni foi
dado ao novo espécime.
A
significância do espécime permaneceu objeto de controvérsia até
que, com o avanço da ciência, foi denunciado e declarada em 1953
como uma fraude, consistindo, na verdade, da mandíbula inferior de
um símio combinada com o crânio de um homem moderno, totalmente
desenvolvido. Segundo os relatórios, também foi utilizada uma lima
para desgastar os dentes a fim de parecerem mais velhos, bem como os
ossos (ou parte destes) foram submetidos a substâncias químicas com
o mesmo objetivo. Foi sugerido que a fraude havia sido obra da pessoa
tida como sua descobridora, Charles Dawson (1864-1916), sob cujo nome
foi batizada. Este ponto de vista tem sido questionado e muitos
outros candidatos têm sido propostos como os verdadeiros criadores
da contrafação mas, o fato é que agora, cem anos depois que o
público britânico ter sido enganado pela apresentação do mais
famoso fóssil falso de todos os tempos, um grupo de cientistas quer
descobrir, de uma vez por todas, os responsáveis pela fraude,
alardeada na imprensa popular como “a fraude do século”.
Assim,
como vimos, mesmo no seio das ciências empíricas, por vezes também
chamadas de reais, fáticas ou factuais, que se encarregam de estudar
os fatos e fenômenos naturais em si, colocando a aparte as questões
sociais humana, as fraudes podem existir e permanecer por um certo
tempo. Todavia, por se encontrarem apoiadas na observação e na
experimentação, geralmente não implicam em considerações mais
rigorosas quanto à unicidade e fronteiras da ciência, sendo o
método científico facilmente compatível com a metodologia
específica a cada uma das subáreas neste grupo, qualquer que seja a
escolhida, e por tal seguido em essência e capaz de desmascaram as
fraudes com relativa facilidade.
Já, com
respeito as ciências sociais, estas estudam os aspectos sociais do
mundo humano, ou seja, a vida social de indivíduos e grupos humanos.
Isso inclui a antropologia, os estudos da comunicação, a economia,
a geografia humana, a história, a linguística, as ciências
políticas, a psicologia e a sociologia, e, embora o alvo de estudo
delas seja um alvo científico legítimo, a metodologia específica
empregadas por muitas subáreas de estudo encerradas neste grupo,
muitas vezes exigem importantes considerações a respeito dos
pilares da ciência, principalmente quanto ao associado às suas
fronteiras. Ao se considerarem as ciências sociais não é raro
encontrarem-se estudos no limite daquilo que se pode considerar
científico. Em miúdos, as ciências sociais serão sempre mais
polemicamente problemáticas e susceptíveis a fraudes e enganos do
que as ciências naturais.
A boa
coisa a se fazer é que o enfoque principal do trabalho do cientista
social se auto regule, no sentido de se manter, sempre, a favor da
promoção da emancipação humana, debaixo de um clima de respeito
intersocial mas, desvendando com denodo as diversas formas efetivas
de injustiça e de tirania social, e as reproduções de abusos e de
opressão, seja de seres humanos contra seres humanos, ou seja de
seres humanos contra a o restante da natureza. Os intelectuais das
ciências sociais são os que mais devem zelar, não apenas pela sua
autonomia, mas também pela responsabilidade social do produto das
suas ideias. Uma fraude em ciências sociais costuma causar a
humanidade um prejuízo incomparavelmente maior do que uma fraude em
ciências naturais.
Para
fazer frente a tal acréscimo de responsabilidade, o cientista social
é aquele que mais deve dar atenção às tomadas de decisões para
ações inovadoras que promovam o desenvolvimento da sua
intelectualidade em inteligência, mesmo não esperando ser, em nada,
ainda melhores remunerados por isso do que já são. Esta é uma
dívida social que eles têm para com o todo da sociedade e,
considerando ainda o fato que, em países importantes como o Brasil,
os cientistas sociais já são muito mais valorizados e melhores
pagos do que os cientistas naturais. Principalmente aqueles
intelectuais cujo trabalho é de cunho predominantemente tecnológico
são, de modo lamentável, muito pouco valorizados aqui no Brasil.
Assim, de
modo algum os intelectuais devem agir como meros serviçais dos
poderes instituídos, por mais que eles encontrem afinidade de
pensamento com a corrente ideológica deste poder mas, sim,
esforçar-se em manter um posicionamento de críticos desses poderes,
mesmo quando elogiando-os mas, sem nunca permitir levar-se pela
prostituição intelectual. Este é o papel do intelectual que supera
os seus interesses imediatos e egoístas e passa a defender os
interesses gerais da humanidade, que são também seus interesses,
contribuindo, assim, com a emancipação humana.
É algo
paradoxal que, na mesmo época em que tanto se valoriza a propriedade
e o capital intelectual nas sociedades, seja também a mesma época
em que se aventa a respeito da obsolescência da função do
intelectual no mundo. Na modernidade o intelectual se encontra
presente e funcional, porém, transformado evoluído, adaptado a
realidade do seu tempo. No site oficial do ministério da cultura
brasileiro, podemos encontrar a postagem de uma interessante crônica
baseada em entrevista de autoria de Alexandre Matias, que é
jornalista e editor do caderno Link do jornal O Estado de S. Paulo.
Sob o título “Intelectual nerd ou nerd intelectual?” o autor,
juntamente como o seu entrevistado (Steven Berlin Johnson é um
escritor norte americano, autor de obras populares sobre de ciências
e tecnologias), nos dá algumas pistas de como decorre esse processo
de adaptação do Intelectual moderno e sua função.
O mais
novo e promissor paradigma envolvendo a condição dos intelectuais,
é o “empreendedorismo intelectual”. O empreendedorismo
intelectual é uma filosofia e uma visão de educação de
visualização de intelectuais, principalmente os acadêmicos, como
"inovadores" e "agentes de mudança." Ele se
concentra na criação de colaborações multidisciplinares e
multi-institucionais destinadas a produzir avanços intelectuais, com
uma capacidade para fornecer soluções reais para os problemas e
necessidades da sociedade. Empreendedorismo é o envolvimento
intelectual acadêmico com o objetivo de mudar a vida.
O empreendedorismo
intelectual expande a missão das instituições de ensino superior de
"avançar as fronteiras do conhecimento" e "preparar
os líderes do amanhã" para também "servir como motores
do desenvolvimento econômico e social". Nesse processo, o papel
do docente e do aluno evolui de o de "provocador intelectual"
para se tornar o que poderia ser chamado de um "empreendedor
intelectual". Empreendedorismo intelectual inclui uma prontidão
para buscar oportunidades, assumir a responsabilidade associada com
cada um e tolerar a incerteza que vem com o início de uma inovação
genuína. Empreendedorismo intelectual muda o modelo e o enfoque do
ensino superior de "aprendizagem – certificação - direito"
para "descoberta – propriedade - prestação de contas."
O empreendedorismo
intelectual tem como premissa a crença de que tanto a inteligência
não se limita à academia, quanto o e empreendedorismo não se
restringe ou sinônimo de negócio. Empreendedorismo é um processo
de inovação cultural. Embora a criação de riqueza material seja
uma expressão de empreendedorismo, em um nível mais profundo do
empreendedorismo, ele é uma atitude para envolver o mundo.
Empreendedores intelectuais, quer de dentro quer de fora das
universidades, assumem riscos e aproveitam as oportunidades,
descobrem e criam conhecimento, inovam, colaboram e resolvem
problemas em qualquer tipo de espaços social: empresarial, governo,
sem fins lucrativos e educação.
Empreendedores
intelectuais entendem que uma verdadeira colaboração entre as
universidades e o público equivale a um incremento de "acesso"
para os ativos intelectuais da academia. É mais do que
"transferência de conhecimento", a exportação de
soluções cuidadosamente embrulhados rolando fora do campus via uma
correia transportadora definidamente direcionada. A colaboração
neste novo paradigma exige humildade e respeito mútuo, a propriedade
conjunta de aprendizagem e a cocriação de um potencial inimaginável
para a inovação, qualidades que moverão as universidades, além do
sentido típico elitista de "serviço". Quanto ao conceito
de conhecimento, depois de tudo, envolve a integração de teoria, de
prática, mas também de produção.
A
iniciativa de empreendedorismo intelectual é defendida pelo
professor Richard Cherwitz da Universidade do Texas, em Austin. No
Brasil, recentemente, a Agência de Inovação Inova Unicamp lançou o programa Inova Descobre, para fomentar iniciativas
empreendedoras de estudantes de graduação e pós-graduação da
universidade brasileira.
Apesar de
ser um grande prazer ouvir falar em iniciativas como estas, eu não
consigo evitar pensar numa eventual ocorrência de relativização
dos seus possíveis resultados. Acontece que, tanto o
empreendedorismo, quanto o intelectualismo, nomes que veiculam um
conjunto variado de sentidos, são vocações, dons e talentos
naturais. Não se pode criar um empreendedor a partir de alguém que
não tenha esse talento, nem se pode criar um intelectual, a partir
de alguém que não tenha vocação para isso. Todavia, ambos podem
ser desenvolvidos ou aprimorados, desde que se tenha o dote da
vocação, o dom e talento natural, capacitação que transcende ao
produto da educação.
Nos idos
da década 1920, o filósofo, cientista social e político italiano
Antonio Gramsci, criou a definição daquilo que deveria ser o
“intelectual orgânico”. Segundo a definição gramsciana,
enquanto o intelectual tradicional é aquele que se vincula a um
determinado grupo social, instituição ou corporação e que
expressa os interesses particulares compartilhados pelos seus
membros, o intelectual orgânico seria aquele que provém,
originalmente, de uma determinada classe social, e que se manteria
vinculado a ela por tempo indeterminado, atuando como porta-voz da
ideologia e dos interesse daquela mesma classe social. Na visão de
Gramsci, tal intelectual seria o responsável maior pela nova forma
do Estado e da sociedade. Para isso a classe operaria, que deveria
ser aquela que encabeçaria as mudanças sociais, precisaria produzir
os seus intelectuais orgânicos, que atuariam como "funcionários
da superestrutura", terminando por moldar o mundo à imagem e
semelhança da sua classe fundamental.
Na visão
de Gramsci, a luta da classe operária seria no sentido de afirmar
esse novo intelectual, e apoiá-los em seu confronto por hegemonia e
captura frente aos pré existentes intelectuais tradicionais. Mas, o
fato é que, até o presente momento, em nenhuma sociedade humana
conhecida, verificou-se que as classes operárias produziram, de modo
natural e espontâneo, intelectuais orgânicos de modo que
caracterizasse a formação do Estado revolucionário idealizado por
Gramsci, nem é correto identificá-los com atuais intelectuais dos
partidos de esquerda ou aos seus militantes.
Todavia,
numa avaliação em paralelo com relação a moderna concepção do
intelectual empreendedor, podemos constatar um mérito desta
ideologia, na medida em que ela foi a primeira a definir que este
novo tipo de intelectual (no caso o intelectual orgânico) não seria
mais afastado do mundo produtivo ou encharcado de retórica abstrata,
mas capaz de ser, simultaneamente, especialista, político e
dirigente, dentro da sua própria classe.
Assim, pelos mesmos motivos que o intelectual orgânico nunca vingou naturalmente, programas de
empreendedorismo intelectual só poderão ter sucesso em desenvolver
e aperfeiçoar vocações, dons e talentos naturais pré existentes.
“Tão
boa é a sabedoria como a herança, e dela tiram proveito os que vêm
o sol. Porque a sabedoria serve de defesa, como de defesa serve o
dinheiro; mas a excelência do conhecimento é que a sabedoria dá
vida ao seu possuidor.” Eclesiastes 7:11-12, sobre inteligência espiritual.
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